
É no Largo da Portagem (a antiga estrada sul da cidade) que o doutor Adolfo Rocha tem o seu consultório de otorrino desde que se estabeleceu Coimbra, em 1941, depois de ter exercido em Leiria. Ao publicar "O quarto dia" 1939 de "A criação do Mundo" foi detido pela PIDE devido às opiniões sobre a Espanha franquista que exprimia no livro.
Passou vários meses na prisão e, já em liberdade, em 1941, contraiu matrimónio civil com a lusista belga Andrée Crabbé. Podia ter optado entre Lisboa e o Porto: mas apesar disso escolheu Coimbra, por "estar a meio caminho entre um solo montaraz, convulso, e um litoral batido pelas ondas impetuosas, um equilíbrio urbano sintonizado com o remanso da paisagem circundante".
O consultório fica no primeiro andar de um prédio antigo. As escadas e o patamar são amplos. O chão é de madeira. As paredes altas e baças. A sala de espera tem a porta aberta e está inundada por essa "luz de médium".
Quatro cadeiras rústicas de madeira, amplas, guardam os quatro cantos. No centro há também uma pequena mesa. O mobiliário é de certeza o mesmo há mais de quarenta anos. Não há jornais nem revistas. E também não há esse cheiro típico dos consultórios.
O doutor Rocha não tem enfermeira nem secretária. Quando alguém telefona é ele quem atende. Ouve-se a sua voz suave, mas contundente, através da porta envidraçada. Torga estende-nos a mão. É alto, magro, de cara enxuta, afilada. Move-se como um junco, sem nunca perder de vista o seu interlocutor. Senta-se atrás da mesa do seu gabinete, invisível por debaixo de uma montanha desordenada de livros, revistas literárias e médicas. As gavetas estão cheias de blocos, folhas em branco e fotocópias de manuscritos em vias de seguir para a tipografia. Em frente, em cima da cadeira, há uma pilha de frascos e medicamentos em equilíbrio instável. Perante o seu aspecto e vitalidade, custa a crer que tem 80 anos.
A sua opinião sobre os jornalistas não pode ser pior. Aproveito a ocasião para abrir uma pasta e mostrar-lhe um monte de livros seus, alguns em edições antigas, já raras. Pega na primeira edição espanhola de "Bichos", publicada em Coimbra em l946, em tradução de Maria Josefa Canellada, e devolve-ma imediatamente, com pavor "Também não assino livros".
Torga não só não dá autógrafos, como tão-pouco responde a cartas manuscritas. Os seus pacientes são seres privilegiados apesar de o doutor Rocha sempre ter considerado uma familiaridade impertinente qualquer alusão menos discreta à sua faceta de escritor.
As negativas de Torga, dadas com modos extremamente cordiais e cavalheirescos, mal tinham começado. "Saiba que nunca mando nenhum livro aos jornais ou revistas especializados. Fui sempre o meu próprio editor e os meus livros são trinta por cento mais baratos do que os outros. Tão-pouco tenho o menor interesse pela crítica literária académica. Os seus livros sempre tiveram o mesmo aspecto rústico e formal. Na capa, a palavra Coimbra e o ano da edição.
Previne-me igualmente da sua recusa em ser fotografado. Sente asco e indignação perante os meios de comunicação que utilizam as fotografias para fazer comércio com as desgraças humanas, Repete-me várias vezes que a escrita é um acto ontológico e que todo o resto são coisas que o distraem.O tempo vai passando e desvio a conversa para alguns aspectos concretos da sua obra e das suas viagens. Torga mostra-se mais à vontade e mais satisfeito falando sobre este último tema. Falamos da Itália, da semelhança entre Coimbra e FIorença, entre os campos do Arno e os do Mondego. Uma visita urgente e imprevista põe fim a este primeiro "round".
Torga no consultório, no Largo da Portagem, em Coimbra (foto inédita de Formidável), e a tabuleta indicativa do mesmo.
Torga fica pensativo durante um momento e depois convida-me para almoçar em sua casa, daí a umas horas.
A família Rocha mora numa zona residencial, na rua Fernando Pessoa, numa linda moradia de dois andares. Para entrar em casa tem de se atravessar um jardim amplo e muito bem tratado.
que afinal são urzes, essas flores silvestres que nascem nos sítios mais inesperados e que abundam nas serras de Trás-os-Montes, onde nasceu o marido.A partir de 1934 começou a utilizar esse pseudónimo, com que assinou pela primeira vez um livro de prosa intitulado "A terceira voz". A escolha do nome próprio de Miguel foi uma homenagem a três escritores espanhóis: Miguel de Molinos, Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno.A casa, construída em 1952, está cheia de luz e de um grande silêncio. O escritório amplo fica no primeiro andar. Nas estantes que cobrem as paredes há livros minuciosamente seleccionados.Torga escreve num amplo sofá-cama, à noite, durante muitas horas. Agora, depois do meio-dia, Torga começa finalmente a falar.
Passou vários meses na prisão e, já em liberdade, em 1941, contraiu matrimónio civil com a lusista belga Andrée Crabbé. Podia ter optado entre Lisboa e o Porto: mas apesar disso escolheu Coimbra, por "estar a meio caminho entre um solo montaraz, convulso, e um litoral batido pelas ondas impetuosas, um equilíbrio urbano sintonizado com o remanso da paisagem circundante".
O consultório fica no primeiro andar de um prédio antigo. As escadas e o patamar são amplos. O chão é de madeira. As paredes altas e baças. A sala de espera tem a porta aberta e está inundada por essa "luz de médium".
Quatro cadeiras rústicas de madeira, amplas, guardam os quatro cantos. No centro há também uma pequena mesa. O mobiliário é de certeza o mesmo há mais de quarenta anos. Não há jornais nem revistas. E também não há esse cheiro típico dos consultórios.

O doutor Rocha não tem enfermeira nem secretária. Quando alguém telefona é ele quem atende. Ouve-se a sua voz suave, mas contundente, através da porta envidraçada. Torga estende-nos a mão. É alto, magro, de cara enxuta, afilada. Move-se como um junco, sem nunca perder de vista o seu interlocutor. Senta-se atrás da mesa do seu gabinete, invisível por debaixo de uma montanha desordenada de livros, revistas literárias e médicas. As gavetas estão cheias de blocos, folhas em branco e fotocópias de manuscritos em vias de seguir para a tipografia. Em frente, em cima da cadeira, há uma pilha de frascos e medicamentos em equilíbrio instável. Perante o seu aspecto e vitalidade, custa a crer que tem 80 anos.
A sua opinião sobre os jornalistas não pode ser pior. Aproveito a ocasião para abrir uma pasta e mostrar-lhe um monte de livros seus, alguns em edições antigas, já raras. Pega na primeira edição espanhola de "Bichos", publicada em Coimbra em l946, em tradução de Maria Josefa Canellada, e devolve-ma imediatamente, com pavor "Também não assino livros".
Torga não só não dá autógrafos, como tão-pouco responde a cartas manuscritas. Os seus pacientes são seres privilegiados apesar de o doutor Rocha sempre ter considerado uma familiaridade impertinente qualquer alusão menos discreta à sua faceta de escritor.
As negativas de Torga, dadas com modos extremamente cordiais e cavalheirescos, mal tinham começado. "Saiba que nunca mando nenhum livro aos jornais ou revistas especializados. Fui sempre o meu próprio editor e os meus livros são trinta por cento mais baratos do que os outros. Tão-pouco tenho o menor interesse pela crítica literária académica. Os seus livros sempre tiveram o mesmo aspecto rústico e formal. Na capa, a palavra Coimbra e o ano da edição.
Previne-me igualmente da sua recusa em ser fotografado. Sente asco e indignação perante os meios de comunicação que utilizam as fotografias para fazer comércio com as desgraças humanas, Repete-me várias vezes que a escrita é um acto ontológico e que todo o resto são coisas que o distraem.O tempo vai passando e desvio a conversa para alguns aspectos concretos da sua obra e das suas viagens. Torga mostra-se mais à vontade e mais satisfeito falando sobre este último tema. Falamos da Itália, da semelhança entre Coimbra e FIorença, entre os campos do Arno e os do Mondego. Uma visita urgente e imprevista põe fim a este primeiro "round".
Torga no consultório, no Largo da Portagem, em Coimbra (foto inédita de Formidável), e a tabuleta indicativa do mesmo.
Torga fica pensativo durante um momento e depois convida-me para almoçar em sua casa, daí a umas horas.
A família Rocha mora numa zona residencial, na rua Fernando Pessoa, numa linda moradia de dois andares. Para entrar em casa tem de se atravessar um jardim amplo e muito bem tratado.
que afinal são urzes, essas flores silvestres que nascem nos sítios mais inesperados e que abundam nas serras de Trás-os-Montes, onde nasceu o marido.A partir de 1934 começou a utilizar esse pseudónimo, com que assinou pela primeira vez um livro de prosa intitulado "A terceira voz". A escolha do nome próprio de Miguel foi uma homenagem a três escritores espanhóis: Miguel de Molinos, Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno.A casa, construída em 1952, está cheia de luz e de um grande silêncio. O escritório amplo fica no primeiro andar. Nas estantes que cobrem as paredes há livros minuciosamente seleccionados.Torga escreve num amplo sofá-cama, à noite, durante muitas horas. Agora, depois do meio-dia, Torga começa finalmente a falar.
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César António Molina, JL Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano VII, n.º 290 (26 de Janeiro de 1988)
César António Molina, JL Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano VII, n.º 290 (26 de Janeiro de 1988)