quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Miguel Torga Parte II



É no Largo da Portagem (a antiga estrada sul da cidade) que o doutor Adolfo Rocha tem o seu consultório de otorrino desde que se estabeleceu Coimbra, em 1941, depois de ter exercido em Leiria. Ao publicar "O quarto dia" 1939 de "A criação do Mundo" foi detido pela PIDE devido às opiniões sobre a Espanha franquista que exprimia no livro.
Passou vários meses na prisão e, já em liberdade, em 1941, contraiu matrimónio civil com a lusista belga Andrée Crabbé. Podia ter optado entre Lisboa e o Porto: mas apesar disso escolheu Coimbra, por "estar a meio caminho entre um solo montaraz, convulso, e um litoral batido pelas ondas impetuosas, um equilíbrio urbano sintonizado com o remanso da paisagem circundante".
O consultório fica no primeiro andar de um prédio antigo. As escadas e o patamar são amplos. O chão é de madeira. As paredes altas e baças. A sala de espera tem a porta aberta e está inundada por essa "luz de médium".
Quatro cadeiras rústicas de madeira, amplas, guardam os quatro cantos. No centro há também uma pequena mesa. O mobiliário é de certeza o mesmo há mais de quarenta anos. Não há jornais nem revistas. E também não há esse cheiro típico dos consultórios.
O doutor Rocha não tem enfermeira nem secretária. Quando alguém telefona é ele quem atende. Ouve-se a sua voz suave, mas contundente, através da porta envidraçada. Torga estende-nos a mão. É alto, magro, de cara enxuta, afilada. Move-se como um junco, sem nunca perder de vista o seu interlocutor. Senta-se atrás da mesa do seu gabinete, invisível por debaixo de uma montanha desordenada de livros, revistas literárias e médicas. As gavetas estão cheias de blocos, folhas em branco e fotocópias de manuscritos em vias de seguir para a tipografia. Em frente, em cima da cadeira, há uma pilha de frascos e medicamentos em equilíbrio instável. Perante o seu aspecto e vitalidade, custa a crer que tem 80 anos.
A sua opinião sobre os jornalistas não pode ser pior. Aproveito a ocasião para abrir uma pasta e mostrar-lhe um monte de livros seus, alguns em edições antigas, já raras. Pega na primeira edição espanhola de "Bichos", publicada em Coimbra em l946, em tradução de Maria Josefa Canellada, e devolve-ma imediatamente, com pavor "Também não assino livros".
Torga não só não dá autógrafos, como tão-pouco responde a cartas manuscritas. Os seus pacientes são seres privilegiados apesar de o doutor Rocha sempre ter considerado uma familiaridade impertinente qualquer alusão menos discreta à sua faceta de escritor.
As negativas de Torga, dadas com modos extremamente cordiais e cavalheirescos, mal tinham começado. "Saiba que nunca mando nenhum livro aos jornais ou revistas especializados. Fui sempre o meu próprio editor e os meus livros são trinta por cento mais baratos do que os outros. Tão-pouco tenho o menor interesse pela crítica literária académica. Os seus livros sempre tiveram o mesmo aspecto rústico e formal. Na capa, a palavra Coimbra e o ano da edição.
Previne-me igualmente da sua recusa em ser fotografado. Sente asco e indignação perante os meios de comunicação que utilizam as fotografias para fazer comércio com as desgraças humanas, Repete-me várias vezes que a escrita é um acto ontológico e que todo o resto são coisas que o distraem.O tempo vai passando e desvio a conversa para alguns aspectos concretos da sua obra e das suas viagens. Torga mostra-se mais à vontade e mais satisfeito falando sobre este último tema. Falamos da Itália, da semelhança entre Coimbra e FIorença, entre os campos do Arno e os do Mondego. Uma visita urgente e imprevista põe fim a este primeiro "round".
Torga no consultório, no Largo da Portagem, em Coimbra (foto inédita de Formidável), e a tabuleta indicativa do mesmo.
Torga fica pensativo durante um momento e depois convida-me para almoçar em sua casa, daí a umas horas.
A família Rocha mora numa zona residencial, na rua Fernando Pessoa, numa linda moradia de dois andares. Para entrar em casa tem de se atravessar um jardim amplo e muito bem tratado.
que afinal são urzes, essas flores silvestres que nascem nos sítios mais inesperados e que abundam nas serras de Trás-os-Montes, onde nasceu o marido.A partir de 1934 começou a utilizar esse pseudónimo, com que assinou pela primeira vez um livro de prosa intitulado "A terceira voz". A escolha do nome próprio de Miguel foi uma homenagem a três escritores espanhóis: Miguel de Molinos, Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno.A casa, construída em 1952, está cheia de luz e de um grande silêncio. O escritório amplo fica no primeiro andar. Nas estantes que cobrem as paredes há livros minuciosamente seleccionados.Torga escreve num amplo sofá-cama, à noite, durante muitas horas. Agora, depois do meio-dia, Torga começa finalmente a falar.
In Netprof
César António Molina, JL Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano VII, n.º 290 (26 de Janeiro de 1988)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Miguel Torga Parte I


Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha e autor de uma produção literária vasta e variada, nasceu em S. Martinho de Anta, Vila Real, a 12 de Agosto de 1907, e morreu em Coimbra, a 17 de Janeiro de 1995.
Depois de ter trabalhado no Brasil, entre os 13 e os 18 anos (experiência que viria ser evocada na série de romances de inspiração autobiográfica Criação do Mundo), Adolfo Correia da Rocha regressou a Portugal, vindo a licenciar-se em Medicina. Durante os estudos universitários, em Coimbra, travou conhecimento com o grupo de escritores que viriam a fundar a Presença, chegando a publicar nas edições da revista o seu segundo volume de poesia, Rampa. Em 1930, depois de assinar, com Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca, uma carta de dissensão enviada à direcção da publicação coimbrã, co-funda as efémeras revistas Sinal e Manifesto. Não obstante a passagem pelo grupo presencista, no momento da suas primícias literárias, Miguel Torga assumirá, ao longo dos cerca de cinquenta títulos que publicou - frequentemente em edições de autor e à margem de políticas editoriais - uma postura de independência relativamente a qualquer movimento literário. Os seus textos poéticos, numa primeira fase, abordaram temas bucólicos, a angústia da morte, a revolta, temas sociais como a justiça e a liberdade, o amor, e deixaram transparecer uma aliança íntima e permanente entre o homem e a terra.
Na poesia, depois de algumas colectâneas ainda imbuídas de certo dramatismo retórico editadas no início dos anos trinta, a publicação dos volumes onde ostenta já o pseudónimo Miguel Torga - segundo Pilar Vásquez Cuesta (cf. Revista de Ocidente, Agosto de 1968), esta invenção pseudonímica simboliza, pela analogia com a urze, a obrigação de constância, firmeza e beleza que o artista deve manter, por mais adversas que sejam as estruturas pessoais e históricas em que se move, ao mesmo tempo que "a escolha do nome Miguel responde ao propósito de acrescentar um novo elo lusitano a toda uma cadeia espanhola (Miguel de Molinos, Miguel de Cervantes, Miguel de Unamuno) de pensamento combativo e rebelde" - como Lamentação (1934), O Outro Livro de Job (1936), Libertação (1944), Odes (1946), Nihil Sibi (1948), Cântico do Homem (1950), Penas do Purgatório (1954), Orfeu Rebelde (1958), Câmara Ardente (1962) ou Poemas Ibéricos (1965), firmam uma poesia que é "fundamentalmente a busca da fidelidade no Terrestre, a busca da aliança sem mácula do homem com o Terrestre; a busca da inteireza do homem no Terrestre" (ANDERSEN, Sophia de Mello Breyner, cit. in Boletim Cultural do Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 10, dedicado a Miguel Torga, Maio de 1988, p. 72). Ancorada no húmus natal, essa poesia dá também conta de uma "ambição de absoluto" que, para Torga, deve "permanecer como simples acicate, pura aspiração, porque o homem tem de realizar-se no relativo, a sua felicidade possível está no relativo, logo na contradição, na luta, numa esperança desesperada", não renegando "essa condição dramática de homem, besta e espírito, egoísmo e entrega generosa" (COELHO, Jacinto do Prado, cit. ibi., p. 72). Na prosa, obras como Bichos, Contos da Montanha e Novos Contos da Montanha marcaram, até aos nossos dias, sucessivas gerações de leitores que aí se deslumbraram com uma fusão entre o homem, o mundo animal e o mundo natural, vazada numa prosa "a um tempo sortílega e enxuta, despegada do efémero, agarrada ao concreto" (cf. MOURÃO-FERREIRA, David - "Miguel Torga e a Respiração do Mundo, ibi., p. 8). No domínio narrativo, a sua bibliografia contém ainda os seis volumes da ficção de inspiração autobiográfica Criação do Mundo e os dezasseis volumes do Diário, onde compaginam textos de vários géneros, desde os poemas e da reflexão cultural e ideológica, ao testemunho subjectivo de acontecimentos históricos, a notas tomadas nas inúmeras digressões pelo país. A sua bibliografia conta ainda com algumas páginas de intervenção cívica ou de ensaísmo como Fogo Preso ou Traço de União, bem como quatro títulos de teatro. Prevalecendo em qualquer dos géneros que cultivou "uma obsessão metafísica da liberdade" (a expressão é de Jesús Herrero, em Miguel Torga, Poeta Ibérico (cit. Ibi., p. 73), atestada biograficamente, durante a longa ditadura salazarista, por uma rebeldia que lhe valeu a apreensão e interdição de várias obras, bem como a proibição de saída do país e o levantamento de obstáculos ao exercício da sua actividade profissional, para David Mourão-Ferreira (Saudação a Miguel Torga, cit. ibi, p. 75), "O que há [...] de absolutamente invulgar, porventura único, no caso de Miguel Torga é a circunstância de ele ser, cumulativamente, quer como poeta, quer como prosador, um indivíduo inconfundível, um telúrico padrão e um cívico expoente da própria Pátria, um artístico paradigma da língua em que se exprime, um predestinado legatário de valores culturais em permanente abalo sísmico, um atento receptor e um sensível transmissor dos inúmeros problemas - quantos deles talvez indissolúveis - do Homem de todos os quadrantes, ora considerado na moldura dos condicionalismos que o cerceiam, ora ainda mais frequentemente entendido sb specie aeternitatis". É nesta medida que Fernão de Magalhães Gonçalves (Ser e Ler Torga, cit. ibi., p. 76) considera o modo como a obra de Miguel Torga "é progressivamente estruturada por três discursos ou níveis de sentido que evoluem através de fenómenos de divergência e de convergência numa suscitação dialéctica que põe a nu o movimento das elementares componentes dramáticas da natureza humana: o apelo da transcendência (discurso teológico), o fascínio telúrico (discurso cósmico) e o imperativo da liberdade (discurso sociológico)". Naquele que ainda é um dos mais profundos estudos sobre Miguel Torga, Eduardo Lourenço refere-se, percorrendo os vários níveis da sua matéria poética (incidindo particularmente na relação com o presencismo, na problemática religiosa e no sentimento telúrico que a percorre), a um "desespero humanista" que, partindo da "espécie de indecisão e luta que nela se trava entre um conteúdo que devia fazer explodir a forma e todavia se consegue moldar nela", "É humanista por ser filho da intenção mil vezes expressa na obra de Miguel Torga de confinar a realidade humana unicamente no Homem e na sua aventura cósmica, embora a presença mesma desse desespero testemunhe que essa intenção não encontra no espírito total do poeta uma estrada luminosa e larga. Como a todos os lugares reais ou ideais em que o homem busca a salvação, conduz a este humanismo [...] a porta estreita de uma agonia pessoal" (LOURENÇO, Eduardo - "O Desespero Humanista em Miguel Torga", in Tempo e Poesia, Porto, editorial Inova, 1974, p. 123). Proposto por duas vezes para Nobel da Literatura (1960 e 1978), a sua obra e a sua personalidade constituíram um referente cultural a nível nacional e internacional, tendo recebido, em vida, os Prémios Montaigne (1981), Camões (1989), Vida Literária (da Associação Portuguesa de Escritores, em 1992), o Prémio de Literatura Écureuil (do Salão do Livro de Bordéus, em 1991) e o Prémio da Associação Internacional de Críticos Literários, em 1994.

Miguel Torga. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2007